Introdução
Dentre os diversos estudos envolvendo o gênero Alouatta, o comportamento locomotor tem sido bastante discutido (Mendel, 1976; Youlatos, 1993; Cant, 1986; Prates et al., 1990; Gebo, 1992; Bicca-Marques e Calegaro-Marques, 1995), embora sejam poucos os registros sobre o deslocamento terrestre. Um outro comportamento pouco documentado é o de beber água, considerado não muito comum para o gênero, já que os barbados obtêm água dos alimentos consumidos; principalmente folhas novas e de frutos (Glander, 1978; Bicca-Marques, 1992). O presente estudo relata a ocorrência de eventos de uso do solo para locomoção e obtenção de água em um grupo de Alouatta guariba clamitans e discute as possíveis causas para estes comportamentos nos barbados da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala / Estação Biológica de Caratinga (EBC).
Metodologia e Grupo de Estudo
O estudo foi realizado com um grupo de barbados (A. guariba clamitans) na RPPN Feliciano Miguel Abdala, no município de Caratinga, Minas Gerais. O local do estudo foi um fragmento de 970 ha de Mata Atlântica, cercado por pastos e áreas agrícolas. As observações sobre deslocamento terrestre foram registradas através dos métodos de scan sampling e ad libitum (Altmann, 1974) no decorrer de cinco dias por mês, de maio a outubro de 2003. O grupo de estudo era inicialmente composto por oito indivíduos (três machos, sendo um adulto, um sub-adulto e um juvenil, três fêmeas adultas e dois infantes), acrescido de um indivíduo após o nascimento de um filhote no penúltimo mês de estudo.
Resultados
Ao final do período de estudo, foi registrado um total de 18 observações de uso do solo pelo grupo de A. guariba clamitans. Destas, dez observações corresponderam ao uso do solo para deslocamento e obtenção de água, e os demais eventos corresponderam unicamente ao deslocamento terrestre. Não houve uma seqüência de descida ao solo específica de acordo com a classe sexo-etária. Todos os integrantes do grupo foram avistados fazendo uso do solo, e ora eram os machos os primeiros a descerem, ora as fêmeas (Tabela 1). Freqüentemente também foi possível observar apenas um único indivíduo do grupo descendo ao solo. Nenhum caso de geofagia foi notificado.
Tabela 1
Sumário dos eventos diários de descida e a quantidade de vezes que cada indivíduo desceu ao solo por dia. (*Presença de infante.)
Uma importante observação sobre o deslocamento terrestre, foi o fato de que nos locais de travessia pelo solo, havia a possibilidade de travessia também pela copa das árvores. Em todos os eventos observados a altura média do estrato arbóreo no local em que os indivíduos desciam ao chão era superior ou igual a 20 m, e sempre havia árvores próximas para que o grupo pudesse se locomover sem a necessidade de descer ao solo.
O tempo de permanência no solo variou bastante, compreendendo o intervalo de 1 a 10 minutos. E com relação ao comportamento exibido durante a descida, os indivíduos demonstravam aparente tranqüilidade quando precisavam fazer uso deste ambiente, não havendo nenhum comportamento de vigilância, com exceção de uma fêmea grávida, que se mostrava alerta e bastante receosa com a presença do observador, mesmo após o nascimento do infante. Contudo, mesmo exibindo este tipo de comportamento, esta fêmea fez uso do solo como os outros membros, inclusive sozinha.
Durante o período de estudo, a única forma de obtenção direta de água foi em um pequeno córrego que passa no meio da reserva. Todas as observações sobre o consumo de água foram realizadas nos meses de julho (N = 4), agosto (N = 4) e início de setembro (N = 2), lembrando que este é o período seco de outono e inverno na região de Caratinga.
Discussão
A utilização do solo pelos primatas do gênero Alouatta tem sido citada por alguns pesquisadores ao longo das últimas décadas (e.g. Schön-Ybarra, 1984; Bicca-Marques e Calegaro-Marques, 1994 Bicca-Marques e Calegaro-Marques, 1995; Mendes, 1989; Bernardi et al., 2004), porém os registros ainda são escassos, o que dificulta a formulação de hipóteses para este tipo de comportamento.
Especificamente com relação a Alouatta guariba clamitans, Mendes (1989) observou também na RPPN Feliciano Miguel Abdala / EBC, raros eventos onde barbados deslocaram-se pelo chão; nestas situações, os machos estavam tentando evitar ou fugir de outro macho, o que não ocorreu em nenhuma das dezoito situações observadas no presente estudo. Bernardi et al. (2004) também fizeram registros de uso de solo para esta espécie no Paraná, onde observaram cinco eventos de deslocamento terrestre, dois deles de caráter acidental. Os demais eventos corresponderam à travessia de uma clareira por uma fêmea adulta em busca de alimento e nos dois outros seguintes um macho adulto foi avistado atravessando a trilha em frente ao abrigo dos pesquisadores.
É cabível pensar que ambientes descontínuos poderiam acarretar em uma maior freqüência de utilização do solo. No trabalho realizado por Bicca-Marques e Calegaro-Marques (1995) foi observado que a única forma destes animais se locomoverem de um fragmento a outro na área de estudo era a travessia pelo solo. No entanto, em todas as observações aqui apresentadas, a descida ao solo foi espontânea, pois os indivíduos estavam em locais onde poderiam facilmente se locomover usando a copa das árvores. Um outro ponto a ser considerado é que alterações no habitat poderiam afetar não somente a densidade dos grupos, mas também acarretar em mudanças comportamentais. O trabalho de Dib et al. (1997) corrobora com a hipótese de que os eventos de deslocamento terrestre de muriquis na RPPN Feliciano Miguel Abdala / EBC aumentaram ao longo dos últimos anos, conforme os indivíduos tornaram-se mais habituados à presença de observadores.
Para o grupo de barbados em questão nós sugerimos a existência de um comportamento de deslocamento e utilização de recursos mais flexível, permitindo que esses possam explorar novos ambientes, incluindo aqueles considerados não tão ideais. Pode-se ainda sugerir que a presença constante de observadores interfira diretamente no comportamento do grupo, já que a reserva é local de diversos estudos, principalmente com primatas, e ainda pelo fato de a área de uso do grupo de barbados ficar próxima ao local de acampamento dos pesquisadores. Estes fatores levariam a uma maior “confiança” na exploração de um novo ambiente, pois possíveis ataques de predadores terrestres, assim como aqueles notificados para a espécie simpátrica Brachyteles hypoxanthus (Kuhl, 1820) (Printes et al., 1996), ocorreriam com menor intensidade.
O uso do deslocamento terrestre, ainda, poderia ser traduzido em economia energética, já que a anatomia destes animais é tipicamente a de um quadrúpede e não de um braquiador (e.g., Hershkovitz, 1977; Rose, 1993; Llorens et al., 2001), diferentemente do que ocorre em Brachyteles. Assim, o deslocamento no solo seria um comportamento possível, porém raro, já que seria uma manifestação mais limitada por predadores do que por uma imposição músculo-esquelética.
Os eventos registrados para o consumo de água no presente trabalho, estão relacionados ao período de outono/inverno na localidade de Caratinga; a época de seca da região, havendo menor disponibilidade de frutos e folhas novas, que são os itens alimentares com maiores concentrações de água. Além disso, há uma menor disponibilidade de água empossada em ocos de árvore, galhos, etc., que poderia ser utilizada como fonte alternativa de água como observado para o muriqui, que também desce, durante esta época, ao solo para beber água nesta região (Mourthé et al., 2005). A dieta dos barbados na RPPN Feliciano Miguel Abdala / EBC nesta época do ano consiste basicamente de folhas maduras (Mendes, 1989), o que acarreta em uma diminuição no consumo de água de forma indireta. Assim, os resultados aqui apresentados sobre o comportamento de beber reforçam os resultados apresentados por Moro-Rios et al. (2005), onde os barbados poderiam ter diversas estratégias para obtenção de água quando esta não estivesse disponível nos itens alimentares.
Desta forma, torna-se de grande valia a realização de novos estudos, principalmente com barbados ainda não habituados aos observadores, permitindo assim que o acúmulo de informações ajude a interpretar os padrões de comportamento exibidos por esses primatas e o nível de interferência dos fatores externos sobre os mesmos, principalmente para os grupos que vivem em ambientes fragmentados, a fim de que planos futuros de manejo e conservação possam ser implementados com maior adequação e eficiência.
Acknowledgments
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de financiamento para o projeto que abrange o presente estudo.
Referências
Notes
[1] Bárbara Almeida-Silva. Departamento de Antropologia, Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Quinta da Boa Vista s/no., São Cristóvão, Rio de Janeiro 20940-040, Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: <barbaralmeidas@yahoo.com.br>
[2] Patrícia G. Guedes. Departamento de Vertebrados – Mastozoologia, Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Quinta da Boa Vista, s/no., São Cristóvão, Rio de Janeiro 20940- 040, Rio de Janeiro, Brasil