Introdução
Interações agressivas resultando em morte têm sido relatadas em primatas não-humanos como chimpanzés (Wrangham, 1999; Watts & Mitani, 2001), gorilas-da-montanha (Watts, 1989), colobus-vermelhos (Starin, 1994), Muriqui-do-sul (Talebi et al, 2009) e também em caiararas (Miller, 1998; Gros-Louis et al, 2003), e em macacos-pregos (Ramírez-Llorens et al, 2008; Scarry e Tujague, 2012). A manutenção do monopólio sobre os recursos alimentares na área de vida e/ou sobre as potenciais parceiras reprodutivas, são fatores que exercem forte pressão sobre animais sociais, principalmente em primatas, fazendo com que os animais invistam em interações agonísticas intensas. Estas podem incluir contato físico e até mesmo serem fatais (Sasaki, 1998; Di Bitetti, 2001; Campbell, 2006; Harris, 2010). Interações agonísticas fatais em macacos-prego e caiararas podem ser motivadas por disputa de poder, agressão contra novos indivíduos no grupo, e encontro entre grupos com consequente disputa por território (Gros-Louis et al, 2003). O risco de encontro com machos de outros grupos ou machos solitários é a maior preocupação dos C. capucinus machos no comportamento de vigília (Rose e Fedigan, 1995).
Recentemente o gênero Cebus foi separado em dois, Sapajus e Cebus (Lynch Alfaro et al, 2012), e talvez existam diferenças entre eles no que se refere à suas interações intraespecíficas e à importância delas para a dinâmica dos grupos. Sapajus apella, por exemplo, parece ser menos agressivo durante encontros intergrupais do que Cebus capucinus e C. albifrons (Becker & Berkson, 1979; Defler, 1982; Perry 1996; Gros-Louis et al, 2003; Ramírez-Llorens et al, 2008). As disputas de poder são eventos bastante conflitantes podendo resultar em morte em Cebus (Gros-Louis et al, 2003; Scarry e Tujague, 2012). Muitos estudos com ambos os gêneros relatam casos de infanticídio por machos assim que conquistam o mais alto nível hierárquico do grupo (Izar et al, 2007; Ramírez-Llorens et al. 2008; Rose, 1994), o que reforça o quadro agonístico dos casos de disputa hierárquica. O presente estudo relata o caso de um indivíduo de macaco-prego (Sapajus nigritus - Goldfuss, 1809) macho adulto, encontrado gravemente ferido no arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pelos pesquisadores do Projeto de Conservação da Fauna.
Metodologia
A área de estudo faz parte do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (22°57′ a 22°59′ S e 43°13′ a 43°14′ W). Sua área física compreende 137 hectares, sendo 54 ha do arboreto com cultivo de cerca de 8,000 espécies arbóreas entre nativas e exóticas de várias partes do mundo, e 83 ha de remanescentes florestais de Mata Atlântica contínuas ao Parque Nacional da Tijuca (PNT). Essa ligação com o parque permite o trânsito da fauna autóctone, que utiliza o arboreto do JBRJ para se alimentar, nidificar e se estabelecer (Rangel, 2010). Apesar de ser uma área de conservação ex situ de plantas, o JBRJ funciona como zona de amortecimento desta unidade de conservação federal e colabora para diminuir seus efeitos de borda, sendo, portanto, uma área de conservação in situ para a fauna.
Desde 2007 o Projeto de Conservação da Fauna no JBRJ, um projeto de longa duração, monitora a comunidade de primatas de vida livre na área. Durante esse tempo, pelo menos um dia por semana há pesquisadores observando os grupos de macacos-prego, com esforço médio de 8 horas diárias, em estudos de área de vida, comportamento e dieta. Os macacos-prego dos grupos estudados foram classificados como Sapajus nigritus devido às suas características morfológicas, de acordo com Silva Jr. (2001). Dois grupos de Sapajus nigritus vem sendo acompanhados desde 2007. O grupo 1 usa o arboreto e parte baixa da área de mata secundária do JBRJ, é o mais avistado, estudado e com composição conhecida. O grupo 2, que usa a parte mais alta da mata secundária, se sobrepõe parcialmente com a área do grupo 1 (Fig. 1), e é avistado apenas ocasionalmente. Na data da observação do animal ferido, o grupo 1 de macacosprego possuía 21 indivíduos: três machos adultos, dois machos sub adultos, sete fêmeas adultas, quatro jovens, e cinco infantes. Nas poucas ocasiões em que o grupo 2 foi acompanhado, seu tamanho estimado foi de cerca de 10 indivíduos, com possibilidade de haver mais.
Resultados
Um macaco-prego macho adulto ferido foi encontrado na zona de sobreposição dos dois grupos às 14h de 20/07/2012 com lacerações recentes e graves em três membros e na cintura pélvica. Realizou-se o resgate e contenção do animal para encaminhamento, pela Patrulha Ambiental, para a Clínica de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS). O animal, porém, não resistiu aos ferimentos e veio a óbito antes mesmo do atendimento veterinário. A necropsia realizada no referido animal indica uma série de ferimentos que, pelas formas e medidas das lacerações e perfurações, assim como marcas deixadas na pele e musculatura, são compatíveis com mordidas de macacos-prego (a Figura 2 apresenta maiores detalhes das lesões).
O animal necropsiado apresentava lacerações ocorridas em dias distintos, algumas mais recentes, outras ocorridas dias antes do óbito, verificado pelo início de formação de tecido cicatricial nas bordas lesionadas. Os ferimentos dos membros anteriores incluíam lacerações com marcas de dentes, por mordidas e amputações de partes de membros como terceira falange do dedo médio, por arrancamento. Incluíam também lesões indicativas de ações defensivas, como ferimentos nas palmas dos membros anteriores e posteriores. A fratura exposta de tíbia e fíbula também sugeria que a lesão havia sido criada por um episódio de conflito físico, assim como todas as outras lesões, por ser observada a presença de mordidas nos locais. A lesão na região ventro-lateral da virilha direita mostra nitidamente a impressão de dentes compatíveis com as dimensões e similaridades anatômicas da dentição de primatas do gênero Sapajus adultos, tanto na pele quanto na musculatura. Acompanhamentos posteriores do grupo 1 mostraram que sua composição não havia sido alterada, sugerindo então que o macho adulto que veio a óbito seria proveniente do grupo 2, ou seria um macho solitário.
Discussão e conclusão
O local de encontro do animal e as características das feridas sugerem a ocorrência de uma interação agonística física intraespecífica como causa do óbito. A ausência de mudança na composição do grupo 1 mostra que o animal encontrado poderia ser do grupo 2, que teria se envolvido em conflito intragrupal ou com o grupo 1, ou um animal solitário ferido em um conflito no encontro com um dos grupos. Este caso reforça os padrões de comportamento encontrados em outros estudos quanto a agressividade de um conflito intraespecífico em Sapajus nigritus (Di Bitetti, 2001; Lynch e Rimoli 2000; Scarry e Tujague, 2012), e levanta questões quanto à ecologia e sociedade da espécie, tais como pressão na sobrevivência do grupo e em sua dinâmica.
Os registros sobre os potenciais predadores de macacosprego na área indicam a presença de jibóia (Boa constrictor), gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus), e cães e gatos domésticos, porém nenhum deles capazes de produzir lesões com as características documentadas. Os machos adultos de caiararas passam a maior parte do tempo em comportamento de vigília por conta da presença de indivíduos estranhos ao grupos, mais do que ameaças de predadores (Rose e Fedigan, 1995), revelando a importância de conflitos intraespecíficos na dinâmica do grupo, o que parece ser o caso do presente estudo com S. nigritus.
A disputa por sítio alimentar parece ser um fator importante no presente estudo. No local onde o indivíduo ferido foi encontrado há uma jaqueira onde, frequentemente, os dois grupos foram observados se alimentando, mas nunca ao mesmo tempo. A jaqueira (Artocarpos heterophyllus) é uma árvore exótica, presente em quase todo o JBRJ e no Parque Nacional da Tijuca, e seus frutos representam grande parte da dieta dos macacos-prego durante todo o ano (Rangel, 2010). É provável que esta jaqueira tenha influência no encontro entre os dois grupos, revelando o valor alimentar das áreas de vida como um fator relevante no comportamento agressivo contra potenciais invasores (Enquist e Leimar, 1987; Vogel et al, 2007; Harris, 2010). A zona de sobreposição das áreas dos dois grupos também é o caminho de acesso para o arboreto do JBRJ, que é uma fonte de recursos alimentares pois diariamente visitantes fornecem alimento diretamente aos animais, ou indiretamente, nas lixeiras exploradas como locais de forrageamento (Rangel, 2010).
Outro fator que pode ter influência na postura agressiva é a diferença de tamanho de cada grupo. O grupo 1 parece ser consideravelmente maior, o que poderia encorajar sua investida contra o grupo menor na zona de sobreposição, fora do núcleo do território do grupo menor. Grupos maiores aumentam sua probabilidade de vitórias, exceto nos núcleos do território de um dos grupos, onde a tendência é o grupo residente, mesmo em menor número, ganhar a disputa (Crofoot et al, 2008). Um terceiro aspecto que pode influenciar relações agonísticas é a oportunidade de parceiras de reprodução, provocando competição e defesa de parceiras (Rose, 1994; Perry 1996; Campbell, 2006).
Uma quarta possibilidade seria de um conflito intragrupal no grupo 2. Conflitos intragrupais, incluindo infanticídio, podem resultar em graves ferimentos ou mortes por consequência de uma disputa pela hierarquia do grupo, como fora relatado em Cebus capucinus e Sapajus nigritus (Gros-Louis et al, 2003; Izar et al, 2007; Ramírez-Llorens et al, 2008; Rose, 1994; Lynch & Rímoli, 2000; Scarry e Tujague, 2012). Os conflitos intragrupais são potenciais pressões seletivas para o comportamento e dinâmica dos machos e fêmeas nos grupos. De certo, o risco de ter um dos seus descendentes mortos, afetando a propagação de seus caracteres genéticos, exerce pressáo sobre os machos alfa, sendo mais um dos fatores que os predispõem a atitudes agressivas diante de disputas hierárquicas. Ramírez-Llorens e colaboradores (2008) apontam para uma estratégia de evitação do infanticídio pelas fêmeas prenhes de S. nigritus ao se acasalarem imediatamente com o novo macho alfa, enquanto que as fêmeas de C. capucinus grávidas procuram acasalar ainda com machos imigrantes mesmo que de menor nível hierárquico. Seriam necessários mais estudos com outras espécies dos dois recentes gêneros para verificar se a diferença é válida e ocorre entre os gêneros. É provável que as disputas por status e suas consequências exerçam forte papel na disposição do gênero Sapajus, dispondo-os a se engajar em brigas intragrupais intensas, enquanto nas interações intergrupais tende a encontros mais brandos (Defler, 1982; Becker & Berkson, 1979).
Os achados macroscópicos de necropsia não são suficientes para indicarem a causa mortis. A extensão das lacerações, fraturas e mutilações sofridas pelo animal agredido em diferentes momentos, provavelmente em intervalo de dias, sugere que o animal tenha vindo a óbito em decorrência de infecções septicêmicas como osteomielite, por exemplo. A agressividade e as extensões das lesões, assim como suas características anatômicas e biométricas, sugerem que as agressões foram realizadas por diferentes indivíduos adultos do gênero Sapajus. Sem a observação e registro da interação que resultou no quadro do animal, não é possível no presente estudo verificar os padrões e características do conflito. Porém o estudo endossa o quadro geral encontrado em macacos-prego e caiararas quanto a importância dos conflitos agonísticos para a dinâmica dos grupos e sobrevivência dos indivíduos como um dos fatores de grande pressão para a espécie.