Introdução
Antes mesmo da chegada dos Bandeirantes no vale do Jequitinhonha, em pleno século XVII, criadores de gado já ocupavam a região (Mascarenhas et al., 1989). Entretanto, somente com a descoberta do ouro nas décadas finais de 1600 e da extração do diamante no século seguinte que, de fato, esta região ganhou espaço na história econômica brasileira e seu povoamento se deu de forma mais efetiva (Mascarenhas et al., 1989). Este processo rápido de urbanização alcançado promoveu dificuldades no abastecimento de gêneros alimentícios para a região, o que favoreceu o surgimento de uma frágil agricultura de subsistência, associada, quase sempre, à pecuária de corte (Mascarenhas et al., 1989). Ainda assim, nos anos de 1840, a zona de ocupação nativa da Mata Atlântica em Minas Gerais se limitava à região entre os rios Doce e Jequitinhonha, onde índios Botocudos vagavam livremente, atacando intrusos com certa freqüência (Dean, 1997).
Ainda hoje, o índice de pobreza ostentado pela região é elevado, ocasionando uma intensa migração da zona rural para os grandes centros urbanos e um esvaziamento demográfico persistente (Brasil, IBGE, 2004). Com mais de dois terços da população vivendo na zona rural, ela tem sido caracterizada em vários estudos como “região deprimida”, onde os índices de pobreza, miséria, desnutrição, mortalidade, analfabetismo, desemprego e infra-estrutura sócio-econômica imperam desfavoravelmente em grande parte dos municípios (Gonçalves, 1997; Dias et al., 2002; Ribeiro e Galizoni, 2003).
A média bacia do rio Jequitinhonha estende-se da foz do rio Araçuaí até a cidade de Salto da Divisa, no limite dos Estados de Minas Gerais e Bahia. Neste trecho, são registradas formações vegetais adaptadas a baixos índices pluviométricos e altas temperaturas, destacando-se a caatinga de porte arbustivo, indicando intervenção antrópica (Veloso et al., 1991; SEI, 1997).
A floresta estacional semidecidual e decidual, especialmente de terras baixas, de porte mais desenvolvido, intercala-se à caatinga, que desaparece progressivamente enquanto se avança para leste, em direção do litoral. Pelo menos em três municípios dentro de Minas Gerais há presença de floresta ombrófila densa sub-montana e montana: Bandeira, Santa Maria do Salto e Salto da Divisa (Veloso et al., 1991; Silva e Casteleti, 2003; Andrade, 2004). O antropismo adquire maior proeminência nos municípios mais próximos do baixo rio, o que se evidencia nas extensas pastagens que dominam toda a área. Generaliza-se uma vegetação secundária envolvendo eventuais remanescentes da cobertura vegetal original insulados nos topos das elevações (Gonçalves, 1997; Melo, 2004).
Exatamente em função dessas condições ambientais e da zona de tensão ecológica presente na região que o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) decretou, em 05 de junho de 2003, a Reserva Biológica (REBIO) da Mata Escura. A reserva abrange uma área aproximada de 51.000 ha, entre os municípios de Jequitinhonha e Almenara (Fig. 1).
Breve Histórico
Sua história de criação remonta o final da década passada, quando, em 1999, uma equipe do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) visitou a região com o intuito de identificar os principais remanescentes florestais de Mata Atlântica, com base nas áreas prioritárias para conservação da biodiversidade indicadas pela Fundação Biodiversitas (1998). A região nordeste do estado foi priorizada pelo IEF e pela UFMG exatamente por ser a única que contém fragmentos florestais que possam abrigar uma das últimas populações selvagens do mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas) e do macaco-prego-do-peito-amarelo (Cebus xanthosternos), além de existirem poucos inventários faunísticos significativos para a região (Rylands et al., 1988, 1991–1992; Oliver e Santos, 1991; Pinto e Rylands, 1997; Ribon e Maldonado-Coelho, 2000; Ribon e Maldonado-Coelho, 2001; Feio e Caramaschi, 2002; Melo et al., 2002; Ribon et al., 2002).
Na ocasião, em função da descoberta de uma nova população de muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus) na área (Melo et al., 2002), a Coordenadoria de Proteção da Vida Silvestre, dentro da Diretoria de Pesca e Biodiversidade do IEF, sugeriu a criação de uma Unidade de Conservação (UC) de proteção integral com 20.500 ha, que não foi acatada pela então diretoria geral do referido órgão.
Em 2002, em função de uma compensação ambiental exigida pelo IBAMA com a construção do Aproveitamento Hidrelétrico de Itapebi, em Itapebi (BA), consultores estiveram na região e fizeram um estudo técnico mais detalhado indicando a atual área de criação da reserva na categoria de Parque Nacional. O decreto saiu em 2003, mas considerou a UC como uma REBIO com o dobro do tamanho original sugerido pelo IEF.
O decreto de criação da REBIO foi muito comemorado pela comunidade científica, porém a população local se rebelou e entrou com diversos pedidos na justiça e acabou mobilizando a equipe do Ministério do Meio Ambiente, que estuda meios de revogar o decreto. A situação e o futuro da REBIO ainda são incertos, porém, estudos recentes feitos na região têm enfatizado a importância crucial que a área possui para a fauna, especialmente os primatas.
Importância Biológica
Melo et al. (2005) encontraram três espécies de primatas criticamente em perigo de extinção no Brasil nessa área protegida e a REBIO se configura como a única localidade no mundo com essas condições, pois foram confirmadas populações para o macaco-prego-do-peito-amarelo (Cebus xanthosternos), o bugio-ruivo (Alouatta guariba guariba) e o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus). Além das três espécies serem consideradas mundialmente ameaçadas (IUCN, 2004), duas delas se encontram listadas entre as 25 espécies de primatas mais ameaçadas do planeta (Mittermeier et al., 2005). Melo et al. (2005) realizaram estudos sobre a densidade populacional de primatas na região do Jequitinhonha e os dados apontam para populações pequenas, isoladas e suscetíveis à caça (Fig. 2).
A REBIO abriga ecossistemas diversos, como os campos encontrados na parte mais elevada sobre solo de cascalho e areia quartzítica, onde as bromeliáceas são abundantes e as arvoretas têm até 3 m de altura. Musgos, líquens, algumas melastomatáceas e arbustos como Erythroxylum sp. também estão presentes. A vegetação é característica, diferente de outros campos naturais encontrados no sul e Serra do Espinhaço em Minas Gerais (Andrade, 2004). Como estes campos ocupam pequena extensão, devem ser considerados de alta relevância para conservação, pois apresentam características únicas e podem desaparecer rapidamente sob interferência antrópica. Além disso, a vegetação de Mata Atlântica encontra-se bem preservada em vários trechos da REBIO, especialmente nos vales encaixados, que são extensos e contínuos.
Da avifauna registrada na Mata Escura, duas espécies foram consideradas ameaçadas em nível global, quatro em nível nacional e dez espécies são listadas como ameaçadas no estado, além de várias outras citadas como presumivelmente ameaçadas (Ribon e Maldonado-Coelho, 2000; Ribon et al., 2002). O gavião-pombo-grande (Leucopternis polionota), o gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus), o gavião-pegamacaco (S. tyrannus), a tiriba-de-orelha-branca (Pyrrhura leucotis), o joão-baiano (Synallaxis cinerea) e o papagaiode- peito-roxo (Amazona vinacea) estão na categoria “em perigo” (nível estadual) e essas três últimas são tidas como “vulneráveis” em nível nacional (Fundação Biodiversitas, 2003). O papagaio chauá (A. rhodocorytha) é listado como “criticamente em perigo” em Minas Gerais e “em perigo” no Brasil (Machado et al., 1998; Fundação Biodiversitas, 2003). Juntamente com estas, o tropeiro-da-serra (Lipaugus lanioides) é considerado “vulnerável” globalmente e em nível estadual. Como L. lanioides, a jandaia (Aratinga auricapilla) tem a mesma classificação em nível global, sendo, entretanto, considerada “presumivelmente ameaçada” em nível estadual. O uru (Odontophorus capueira), o araçaribanana (Baillonius bailloni) e a araponga (Procnias nudicollis) também são considerados “vulneráveis” pela lista estadual (Machado et al., 1998).
Não há dúvidas quanto ao extremo valor biológico identificado na região, sua beleza cênica e seu conjunto de ecossistemas, com áreas de transição significativas entre faunas e floras distintas. É dever do Estado zelar pela manutenção desse acervo importante e cabe à sociedade científica se manifestar urgentemente pela manutenção do atual decreto e a implementação imediata da REBIO, uma vez que os recursos previstos pela compensação ambiental existem e necessitam apenas de vontade política para serem utilizados.
Referências
Notes
[1] Fabiano R. Melo, Departamento de Ciências Biológicas, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Carangola, Campus da Universidade do Estado de Minas Gerais (FAFILE/UEMG), Praça dos Estudantes 23, Santa Emília, Carangola 36800-000, Minas Gerais, Brasil, e-mail: <frmelo@carangola.br>.