A caça e o uso da fauna são práticas antigas e que desempenham um importante papel socioeconômico no semiárido nordestino. De uma perspectiva conservacionista, essas atividades tem evidentes implicações que necessitam ser melhor investigadas visando subsidiar planos de manejo sustentável. Diante disso, a presente pesquisa objetiva caracterizar as práticas cinegéticas direcionadas a vertebrados e seus usos em dois municípios do semiárido do Estado da Paraíba (Brasil), bem como avaliar as implicações dessas práticas para conservação. As informações foram obtidas através de entrevistas com questionários semiestruturados, complementadas com conversas informais. Um total de 37 caçadores ou usuários de produtos de animais silvestres foi entrevistado. A fauna cinegética registrada foi representada por 81 espécies de vertebrados, os quais se enquadram nas seguintes categorias de uso: alimentação (42 espécies), estimação (31), medicinal (15), artesanal (05) e ritualística (03). Um total de 21 espécies é abatida por controle, uma vez que podem representar perigo ou prejuízo. Constatou-se que dentre as espécies de valor utilitário, os grupos taxonômicos com papel mais relevante são aves e mamíferos. Nossos resultados apontam a necessidade urgente de programas educativos junto aos moradores locais procurando ordenar as atividades de caça. Considerando que a caça e uso da fauna silvestre são atividades comuns na região, percebe-se a urgência em controlar melhor essas práticas, já que a legislação não tem sido eficaz nesse sentido. A elaboração de planos de manejo e conservação deve levar em consideração o contexto social e cultural das pessoas envolvidas nessas atividades e devem ser implementados em consonância com populações usuárias dos recursos.
Introdução
As relações pessoas/animais são muito antigas e constituem uma conexão extremamente importante para as sociedades humanas, uma vez que estas dependem frequentemente das interações estabelecidas com os recursos faunísticos para sua sobrevivência [12–3]. A variedade de interações que as culturas humanas mantêm com os animais é abordada pela perspectiva da Etnozoologia, ramo da Etnobiologia que investiga os conhecimentos, significados e usos dos animais nas sociedades humanas [4, 5]. Estudos etnobiológicos vêm se intensificando nos últimos anos, sobretudo considerando que questões ligadas à conservação da biodiversidade devem incorporar todas as dimensões que ligam as sociedades humanas aos recursos naturais [6].
No Brasil, animais vêm sendo usados por sociedades indígenas, e por descendentes dos colonizadores europeus desde o período colonial [1, 7]. Tais usos vêm se perpetuando ao longo do tempo e, atualmente, a fauna continua sendo utilizada para diversas finalidades, desde alimentação, em atividades culturais, comércio de animais vivos, partes deles ou subprodutos usados como vestuário, ferramentas, para uso medicinal e mágico-religioso [891011121314–15]. Mesmo diante da ampla utilização da fauna silvestre e da importância desses recursos no Brasil, estudos etnozoológicos ainda são escassos [7]. O caráter clandestino ou semiclandestino associado à caça, utilização e comércio de animais silvestres é um dos fatores que certamente contribui para a escassez de estudos sobre caça e uso de animais silvestres [15].
O uso da fauna silvestre torna-se ainda mais importante em áreas como o semiárido nordestino, onde predomina o bioma Caatinga e vivem mais de 28 milhões de pessoas [16]. Diante das condições adversas do ambiente, uma grande parte dessa população construiu uma estrutura sociocultural peculiar e uma forte relação com o uso dos recursos naturais disponíveis na região. Do ponto de vista ambiental, a Caatinga tem sido bastante modificada, sendo atualmente um dos biomas brasileiros mais alterados pelas atividades humanas [17]. O uso inadequado dos recursos da Caatinga tem causado danos ambientais irreversíveis, uma vez que o processo de desertificação já afeta aproximadamente 15% desse bioma. As consequências de anos de extrativismo predatório são visíveis: perdas irrecuperáveis da diversidade da flora e da fauna, acelerada erosão e queda na fertilidade do solo e na quantidade de água [18]. Uma prova disso é que pelo menos 41 espécies da fauna que ocorrem na Caatinga encontram-se ameaçadas de extinção [19], o que alerta para a importância de estudos que busquem subsidiar medidas eficientes para conservação dos recursos faunísticos locais.
Dentre as principais práticas tradicionais exercidas pelas populações humanas que vivem na Caatinga, a caça de subsistência é uma atividade antiga e representa uma forma tradicional de manejo da fauna silvestre [12, 20]. Essa atividade desempenha importante papel socioeconômico na região, por fornecer carne de alto valor nutritivo às famílias locais. Além do uso da fauna como alimento (carne e ovos), os animais são aproveitados para uma gama de finalidades, tais como uso como remédios (animais medicinais), couro, pele e peças ornamentais (chifres, cascos, ovos e peles), além de serem também utilizados para lazer e ornamentação (pássaros canoros, animais de estimação e ornamentais). Adicionalmente, algumas espécies são perseguidas e mortas por representarem riscos à saúde das pessoas ou das criações domésticas (por exemplo, serpentes peçonhentas e mamíferos carnívoros) ou ainda por causarem prejuízos aos agricultores (por exemplo aves granívoras e roedores que se alimentam de produto de plantações) [12, 2021–22].
Alves et al. [23] ressaltam que os modos como os recursos naturais são utilizados pelas populações humanas são extremamente relevantes para definição de estratégias conservacionistas. Este fato é particularmente importante nas áreas da Caatinga, visto que a população local tem forte dependência dos recursos naturais para sua sobrevivência. Diante dessa realidade, torna-se inconcebível traçar estratégias de conservação para o bioma Caatinga sem considerar o elemento humano e os impactos decorrentes do uso dos recursos naturais na região.
Nesse contexto, a presente pesquisa objetivou inventariar os vertebrados de importância cinegética e caracterizar o contexto sociocultural em que se dá a utilização desses recursos no semiárido do Estado da Paraíba, avaliando também suas implicações para conservação. Espera-se que os resultados possam subsidiar a elaboração de estratégias de conservação e manejo para espécies mais exploradas, além de proporcionar uma compreensão dos modos de utilização da fauna pelas populações locais e seus impactos sobre a biodiversidade, contribuindo com a implementação / aprimoramento de políticas públicas direcionadas ao manejo da fauna silvestre.
Métodos
Área de estudo
A presente pesquisa foi realizada nos municípios de São João do Cariri e Cabaceiras (Figura 1), ambos localizados na mesorregião da Borborema, Cariri, no semiárido do Estado da Paraíba, Brasil [24]. Esta região é um dos pólos xéricos do Nordeste Brasileiro, apresentando precipitação média anual inferior a 600 mm, alcançando em Cabaceiras 246 mm, os mais baixos índices pluviométricos do Brasil [24]. A temperatura média anual é 26°C, com médias mínimas inferiores a 20°C, e a umidade relativa do ar não ultrapassa 75%. No Cariri, os solos são rasos e pedregosos e a vegetação é considerada baixa e pobre em espécies, mas acompanha um gradiente de precipitação e profundidade do solo [25].
Procedimentos
A pesquisa foi realizada no período de janeiro de 2011 a Janeiro de 2012. As informações sobre caça e uso dos vertebrados foram obtidas através de questionários semiestruturados, complementados por entrevistas livres e conversas informais [26]. Os questionários foram aplicados a moradores que caçam (ou já caçaram) ou que usavam produtos derivados de animais silvestres, e englobaram perguntas sobre cada animal caçado (lugar de coleta, apetrechos usados na captura, entre outras), finalidade da caça e ainda questionamentos envolvendo aspectos socioeconômicos dos caçadores. Foram entrevistados 37 pessoas (24 homens e 13 mulheres), com média de idade de 51,21 anos. Dados socioeconômicos dos entrevistados são sumarizados na tabela 1. A seleção dos informantes foi realizada através da técnica de amostragem “bola de neve” (“snowball”) [27].
Tabela 1.
Perfil socioeconômico dos caçadores/usuários (n=37) de animais silvestres na área pesquisada (Semiárido do Estado da Paraíba, Brasil).
Entre os entrevistados, foram escolhidos informantes-chaves (caçadores mais experientes), selecionados pelo critério de “especialistas nativos”, que são aquelas pessoas que se auto-reconhecem e que são reconhecidas pela própria comunidade como culturalmente competentes [28]. Esses especialistas foram acompanhados durante atividades de caça. Antes de cada entrevista foi explicada a natureza e os objetivos da pesquisa e solicitada à permissão aos entrevistados para registrar as informações. A pesquisa foi aprovada pelo comité de ética em pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba (Protocolo CAAE - 0026.0.133.000–10).
Os nomes vernaculares dos espécimes caçados foram registrados como citados pelas pessoas entrevistadas e foram identificados das seguintes formas: 1) análise dos espécimes ou partes destes doados pelos entrevistados; 2) análise de fotografias dos animais feitas durante as entrevistas e durante o acompanhamento das atividades de caça; 3) através dos nomes vernaculares, com o auxílio de taxonomistas familiarizados com a fauna da área de estudo e (4) baseado em estudos zoológicos e etnozoológicos previamente realizados na área da pesquisa [12, 2930–31].
A classificação e nomenclatura utilizada seguiram as determinações do Comité Brasileiro de registros Ornitológicos para aves [32] e Sociedade Brasileira de Herpetologia [33] para répteis. Para mamíferos, foi consultado o site Catalogue of Life, versão 2012 ( http://www.catalogueoflife.org/). Para averiguar o status de conservação das espécies registradas foram utilizados o livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção [34] e a Lista vermelha da IUCN (International Union for Conservation of Nature) [35].
Análises de dados
Para estimar a riqueza de espécies cinegéticas foi empregado o estimador não-paramétrico Chao 2 que utiliza espécies representadas por dois indivíduos (“doubletons”) para estimar o número de espécies não observadas e é calculado através da equação:
No qual: Sobs é o número de espécies registradas, Q1 é o número de espécies presentes em uma única amostra (“uniques”) e Q2 é número de espécies presentes em exatamente duas amostras (“duplicates”) [36, 37]. A utilização do estimador Chao2 é recomendada para estudos etnozoológicos visto que ele é um estimador não-paramétrico baseado em uma matriz de dados de incidência.
A análise de estimativa de riqueza de espécie foi realizada no programa Estimates© versão 8.2 [38] e para a entrada dos dados no programa foi elaborada no Excel uma matriz do tipo entrevistados (linhas) × tipo de espécies (colunas) e em seguida incidida para o bloco de notas. Na matriz foi atribuído o valor 1 para cada espécie mencionada por um entrevistado e 0 para aquelas não mencionadas.
Os valores obtidos a partir do estimador de riqueza, baseado em 1000 aleatorizações com reposição, foram plotados em um gráfico indicando a riqueza de espécies estimada, com 95% intervalo de confiança. Curvas de rarefação de espécies foram elaboradas, no qual o eixo X correspondeu ao número de entrevistados e o Y a estimativa do número de espécies utilizadas.
Testes não-paramétricos para comparações estatísticas foram realizados por meio do software IBM© SPSS© v. 20 [39]. O teste U de Mann-Whitney [40] foi aplicado para verificar se existe diferença entre o número de espécies utilizadas por homens e mulheres. Utilizou-se o teste H de Kruskal-Wallis [41, 42] para verificar se há diferença do número de espécies utilizadas de acordo com as variáveis idade, renda e escolaridade. Para ambos os testes adotou-se o nível de 5% de probabilidade (p<0,05).
Resultados
A fauna cinegética registrada para a área estudada foi representada por 81 espécies, distribuídas em 71 gêneros e 40 famílias (Apêndice 1). Dentre as espécies citadas, as aves tiveram maior destaque quanto à riqueza taxonômica (n=49/ 60,5%), seguida por répteis (n=19/ 23,5%) e mamíferos (n=13/ 16%). Para avifauna, as famílias com maior número de espécies citadas foram Columbidae (n=8 espécies), Emberezidae (n=6), Tinamidae e Icteridae (4 espécies cada); entre os mamíferos, Caviidae, Felidae e Dasypodidae tiveram 2 espécies citadas cada, e entre os répteis, Colubridae, com 8 espécies.
O estimador Chao 2 indicou uma riqueza estimada em 81 espécies, com o intervalo de confiança 95% variando de 80,99 a 81,03. A curva de rarefação de espécies demonstra uma completa estabilização atingindo a assíntota em aproximadamente 15 amostras indicando uma eficiência amostral na coleta de dados (Fig. 2).
Como mostrado na tabela 02, os vertebrados citados se enquadram nas seguintes categorias de uso: alimentação (42 espécies), estimação (31), medicinal (15), artesanal (05) e ritualística (03). Uma mesma espécie pode ser utilizada para múltiplos propósitos, o que potencializa o seu aproveitamento. Dessa forma, mesmo que um animal seja abatido para fins de alimentação, vários produtos não comestíveis podem ser aproveitados para outras finalidades.
Adicionalmente, um total de 21 espécies é abatida por controle, uma vez que podem representar perigo ou prejuízo. Dependendo do uso para qual o animal se destina, este pode ser usado vivo ou depois de abatido. Quando usados vivos, são associados principalmente à categoria animais de estimação, sendo a avifauna o principal grupo utilizado. O uso alimentar apresentou maior número de espécies (51%), sendo a carne o principal produto usado para essa finalidade. Produtos utilizados para os demais propósitos são: banha (gordura), couro, cauda, penas, dentes, fígado, urina, fezes, maracá (chocalho de cascavel), unha e osso.
Em geral os homens citaram mais espécies do que as mulheres (Média homens=73 espécies ± 8,5; mulheres = 60,53 ± 0,51). Houve diferença significativa entre ranking do número de espécies citadas pelas mulheres e homens (Mann-Whitney U=0,00, p<0,001). Adicionalmente, a soma dos rankings do número de espécies citadas pelos homens (∑R1=612) foi maior do que para mulheres (∑R2=91).
Não foi observada diferença significativa entre idade dos entrevistados e número de espécies citadas (H(2)=2,876, p=0.237). Quanto à faixa de renda, tanto os entrevistados que afirmaram possuir renda de até R$ 349 quanto aqueles que recebem acima de R$ 700, mencionaram, em média, 66 espécies/entrevistado. Já aqueles com renda intermediária (entre R$ 350 e R$ 699) mencionaram o uso médio de aproximadamente 72 espécies/entrevistado. Em todo caso, também não houve diferença significativa em relação ao número de espécies mencionadas nos três grupos de renda (H(2)=3.397, p=0.183). Todavia, os indivíduos com renda menor frequentemente mencionaram que caçavam por subsistência ou para obtenção de renda complementar para aquisição de produtos essenciais pra sobrevivência de suas famílias. Por outro lado, os indivíduos com maiores rendimentos financeiros, em geral, desempenham atividades cinegéticas por motivo esportivo ou comercial.
Também não houve diferença entre o número de espécies mencionadas pelos entrevistados em relação às categorias de nível de escolaridade (1-Analfabetos/Semianalfabetos (n=16 indivíduos), 2-Ensino Fundamental Completo ou Incompleto (n=13), 3-Ensino Médio completo ou incompleto, Ensino superior (n=8)), muito embora nós acreditamos que os entrevistados com menor grau de escolaridade desempenhem atividades cinegéticas mais frequentemente.
As aves e os mamíferos são os principais vertebrados cinegéticos de importância alimentar na região estudada. Entre as famílias mais importantes, Dasypodidae, que engloba as espécies Euphractus sexcinctus e Dasypus novemcinctus, teve elevada frequência de citações. Apesar da preferência cinegética pelos mamíferos, quando se considera a riqueza de espécies usadas como alimento, a avifauna foi o grupo mais citado, especialmente columbídeos e tinamídeos, com destaque para as espécies Zenaida auriculata, Leptotila verreauxi, Patagioenas picazuro e Columbina ssp. Outras famílias mencionadas foram Anatidae, Ardeidae, Cariamidae, Jacanidae e Tinamidae. Embora a preferência seja por espécies maiores, mesmo aquelas de pequeno porte são frequentemente caçadas, como algumas pertencentes ao gênero Columbina. O motivo da caça pode ser por subsistência, ou por lazer ou esporte, ocasião em que os animais capturados podem ser consumidos como petisco ou “tira-gosto” acompanhando o consumo de bebidas alcoólicas, durante reuniões de caçadores e amigos.
Dentre os mamíferos de uso alimentar, duas espécies de tatus foram as mais citadas, sendo preferida a espécie D. novemcinctus (tatu verdadeiro), cuja carne é muito apreciada localmente, sendo considerado um animal limpo por ter uma dieta a base de raízes, batatas e pequenos insetos. Por outro lado, o tatu peba (E. sexcinctus), segundo os caçadores, é mais generalista, comendo inclusive restos de outros animais em decomposição. Por isso, alguns caçadores possuem criadouros, nos quais mantem essa última espécie com dieta controlada, visando assim “limpar” o seu trato digestivo, para posterior consumo humano. A figura 03 mostra um tatu sendo preparado para o consumo na residência de um dos entrevistados. Em relação aos répteis de uso alimentar, apenas três espécies foram citadas: Chelonoidis carbonaria, Iguana iguana e Tupinambis merianae.
O principal produto animal usado como alimento é a carne. Não obstante, produtos animais também podem ser indiretamente utilizados na preparação de outros itens consumidos na região. Um bom exemplo é o mocó Kerodon rupestris. Esta espécie, além de ter sua carne apreciada na alimentação, tem parte de seu estômago (chamado de “coalho do mocó”) retirado para fabricação de queijo artesanal, que é localmente chamado de “queijo de coalho” (Fig. 4). No processo de preparação desse queijo, parte do estômago do mocó é colocada no leite extraído de vacas (Bos taurus).
Um total de 31 espécies de vertebrados foi citado pelo seu uso como animais de estimação. Todas são aves, exceto uma espécie de quelônio (C. carbonaria). As famílias com maior número de espécies usadas como animais de estimação foram Columbidae (n= 8/ 16,32%) seguida por Emberizidae (n= 6/ 21,24%), Icteridae (n= 3/ 6.12%), Psittacidae e Turdidae (n= 2 / 4,08% cada). Algumas espécies de aves, além de seu potencial canoro, são também procuradas pela capacidade de imitar outros pássaros, a exemplo do xexéu de bananeira Cacicus cela. Além disso, outra ave muito citada na área pesquisada foi o cancão Cyanocorax cyanopogon (Fig. 5A), que além de seu potencial canoro, também é muito procurado por acreditarem que evita doenças nas casas onde são criados.
Os depoimentos dos entrevistados evidenciaram que 12 espécies de vertebrados, 8 répteis (9,87%) e 4 mamíferos (4,93%) fornecem produtos que são usados para fins medicinais (Tabela 02).A obtenção dos remédios se dá mediante a utilização de partes dos seus corpos ou produtos extraídos deles (Fig. 6), sendo a banha (gordura) o produto medicinal mais utilizado. Dentre os vertebrados cinegéticos medicinais registrados na área pesquisada, os répteis foram os mais citados.
Vinte e três espécies são abatidas por serem consideradas nocivas ou causarem prejuízos (Tabela 2). Os grupos envolvidos em conexões conflituosas com os moradores locais são: répteis (sobretudo serpentes) (n=13), mamíferos (sobretudo carnívoros) (n=5) e aves (n= 3). As aves citadas são mortas por se alimentarem de grãos e causarem prejuízos aos agricultores locais. Subprodutos das espécies citadas também podem ter uso para confecção de artesanato, tais como chifres e couros. Adicionalmente, também podem ser utilizados em rituais religiosos, sobretudo àqueles associados a religiões afro-brasileiras.
Dentre os vertebrados silvestres registrados, 63 espécies figuram na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN [35], sendo que a maioria (n=61) está na categoria pouco preocupante (Least Concern), e 2 delas estão na categoria Vulnerável. São elas “pintassilgo” Sporagra yarrellii e o gato do mato pintado″ Leopardus tigrinus. A primeira espécie é considerada ameaçada em razão de sua limitada área de ocorrência atual. A destruição e/ou alteração dos habitats aliada à grande captura para o mercado clandestino de aves silvestres, contribui para a redução populacional da espécie, hoje rara na natureza [43]. Ameaças à L. tigrinus incluem a perda de habitat, fragmentação, estradas, comércio ilegal (animais e peles), e abate como retaliação depredação de aves domésticas [35], como foi registrado no presente estudo. Sporagra yarrellii e Leopardus tigrinus também constam da lista brasileira de animais ameaçados do Brasil [34]
Discussão
Nossos resultados revelam que população humana da área pesquisada interage com uma expressiva riqueza de vertebrados cinegéticos, seja pelo seu valor utilitário ou por relações de conflito. A maioria dessas espécies cinegéticas citadas também foi registrada em outros estudos etnozoológicos [12, 14, 20, 4445464748495051–52], evidenciando a disseminação de seu uso e sugerindo a existência de padrões de caça de vertebrados cinegéticos na região semiárida brasileira. Mamíferos, pelo seu maior porte e possibilidade de maior retorno energético, são os alvos preferenciais para uso como alimento, embora as aves se destaquem quando se considera a riqueza de espécies usadas para fins alimentares. Esses resultados parecem refletir a riqueza desses grupos no bioma Caatinga, onde há registro de 511 espécies de aves e 156 espécies de mamíferos [5354–55]. Deve-se ressaltar que um grande número de aves cinegéticas está relacionado principalmente à sua utilização como animais de estimação [10, 51, 52, 56]. Esse é um principal fator estimulador do comércio ilegal de aves na Caatinga e em todo Brasil [57].
A carne é o principal produto utilizado para alimentação, e os demais subprodutos animais (tais como chifres, couros e crânios, etc) são utilizados para outros propósitos, maximizando o aproveitamento dos recursos obtidos localmente. No caso particular da zooterapia, como apontam Moura and Marques [58], o uso de sobras/subprodutos aparenta ser amplo e talvez se constitua a característica mais marcante da medicina popular brasileira.
O padrão de caça a vertebrados cinegéticos para uso alimentar, com preferência por mamíferos (com maior biomassa) e aves (com maior riqueza de espécies) demonstra que a escolha das espécies é localmente influenciada pela disponibilidade, riqueza e porte das espécies alvos. A preferência cinegética por mamíferos silvestres reflete uma tendência registrada em diferentes localidades do semiárido brasileiro [12, 14, 49, 59] e do mundo [60616263646566–67]. O maior porte dos mamíferos, que implica em maior retorno em biomassa para os caçadores explica essa situação [12, 61, 68, 69]. Deve-se ressaltar que, na área pesquisada, a riqueza de aves cinegéticas é maior que a de mamíferos. Alves et al. [12] apontaram a importância das aves como recurso trófico no semiárido nordestino. Ressalta-se, porém, que o abate de aves silvestres não está associado apenas à subsistência, podendo ser também revestido de caráter esportivo [12].
A principal espécie de réptil cinegético da região é Tupinambis merianeae, o que tem relação direta com seu porte, uma vez que esta é considerada a maior espécie de lagarto do semiárido [70]. A importância cinegética das espécies do gênero Tupinambis é reconhecida em diferentes localidades no Brasil e em outros países. Fitzgerald [71] afirma que estes lagartos são muito caçados para consumo na Argentina, Paraguai e partes da Bolívia. No semiárido nordestino, o teiú é considerado iguaria, tendo o sabor da sua carne comparado ao da carne de frango. Iguana iguana representa a segunda espécie de maior importância entre os lagartos da área pesquisada, embora não sofra intensa pressão de caça quando comparada a Tupinambis merianeae. O consumo e a comercialização da carne de I. iguana têm uma grande aceitação na América tropical [72], compondo a dieta de muitas pessoas que usam sua carne e ovos como uma fonte principal de proteína. No Brasil, o consumo de iguanas e teiús tem sido registrado não apenas em zonas rurais, mas também em centros urbanos [12, 13, 73].
A predominância de aves silvestres entre as espécies utilizadas como animais de estimação registrada na área pesquisada não é surpresa, refletindo um hábito comum no semiárido nordestino [52, 7475–76]. No Brasil, essa prática se trata de uma atividade tradicional e que ocorre em praticamente todas as cidades do país, desde grandes centros urbanos até pequenas cidades, onde é possível observar e ouvir aves em gaiolas em estabelecimentos comerciais e em residências [57]. A predominância de espécies das famílias Columbidae e Emberizidae para uso como animais de estimação, registrada na área pesquisada, também tem sido documentada em outras localidades do Brasil [8, 10, 52, 57, 7778–79]. Muitos emberezídeos possuem cantos apreciados pelas pessoas, o que coloca essas aves na classe dos cantores mais disputados e contribui para que sejam os pássaros mais procurados pelo comércio clandestino de aves silvestres [75, 80]. Além do canto, emberezídeos e columbídeos são procurados por serem de fácil manutenção em cativeiro, sendo consequentemente as aves mais capturadas atualmente no Estado da Paraíba [8, 76, 81].
O único quelônio (C. carbonaria) citado como animal de estimação na área pesquisada tem sido frequentemente usado para esse propósito em todo Brasil [13]. Essa popularidade pode estar associada ao fato de se tratarem de animais dóceis, rústicos, fáceis de serem capturados e, possivelmente, também por estarem associados à crendice popular de que quem os possui em casa se previne contra doenças como bronquite e asma [82]. Segundo Fitzgerald [83], Chelonoidis sp. é o réptil mais frequentemente comercializado, tanto em mercados e feiras no Brasil quanto no mercado internacional, com destinação para pet shops, coleções privadas e zoológicos.
Todas as espécies usadas na medicina popular na área pesquisada também foram registradas em outros estudos acerca da utilização humana dos recursos zooterápicos no Brasil [8485–86], o que sugere que essa prática é amplamente disseminada. Os répteis foram os animais mais citados para uso medicinal, o que não é surpresa, uma vez que esses animais tem grande importância cultural no Nordeste do país [9, 8788–89]. Dentre as espécies registradas, Tupinambis merianae (Duméril & Bibron, 1839), Crotalus durissus (Linnaeus, 1758), Iguana iguana e Boa constrictor (Linnaeus, 1758) estão entre os animais mais comumente usados na medicina popular brasileira. Particularmente T. merianae e B. constrictor chamam atenção devido a sua ampla aplicabilidade medicinal no Brasil [84, 90]. Na região Nordeste, produtos provenientes dessas espécies são utilizados em comunidades tradicionais e comercializados em mercados públicos em diversas cidades [11, 91, 92]. Trabalhos recentes investigaram o uso da banha dessas duas espécies, mostrando que para algumas doenças, esses produtos podem ter efeito eficaz [9394–95].
Os répteis, juntamente com os mamíferos carnívoros, são os grupos mais comumente envolvidos em relações conflituosas com a população humana da área pesquisada. Os carnívoros, por serem predadores de vertebrados, inclusive domésticos, e os répteis, que em várias localidades são considerados pragas e seres malignos, representando perigo à saúde dos humanos ou de seus animais domésticos, são táxons frequentemente envolvidos em relações conflituosas [12, 13, 22, 96]. No caso dos répteis, as serpentes merecem destaque e todas são mortas, independente de serem ou não peçonhentas, seguindo uma tendência já documentada para o semiárido paraibano [22] e em todo Brasil [13]. Alves et al. [12], que realizaram estudo sobre caça no município de Pocinhos, Paraíba, atestaram que moradores locais não matam apenas serpentes peçonhentas, mas igualmente as não-peçonhentas, como também os anfisbenídeos por possuírem um corpo alongado e desprovido de patas, com morfologia semelhante a uma serpente. Estes animais despertam nas pessoas medo e repugnância, ou simplesmente são considerados potencialmente perigosos [22]
Pesquisas prévias apontam que diversos fatores influenciam no conhecimento sobre a caça e o uso de animais cinegéticos, dentre eles o sexo, renda, idade e escolaridade dos usuários [63, 97, 98]. No presente estudo, não foi observado uma diferença significativa no número de espécies citadas em relação à renda, escolaridade e idade. Isso pode ser explicado pelo fato de que os entrevistados, de um modo geral, apresentaram baixa renda e a escolaridade, mostrando que num contexto maior, a influência dos fatores socioeconômicos em relação à utilização de produtos de animais silvestres é evidente.
O fato dos homens citarem mais espécies cinegéticas do que mulheres, como foi registrada na área pesquisada, não é surpresa, uma vez que as atividades cinegéticas são frequentemente realizadas por homens na maioria das sociedades, aumentando a chance de que eles utilizem ou conheçam mais recursos cinegéticos e os aspectos etnoecológicos das espécies caçadas [12, 99100101102103104105106107108–109].
Implicações conservacionistas
A caça na área pesquisada, como em outras localidades do semiárido brasileiro, é influenciada por uma série fatores biológicos, sócio-econômicos, políticos e institucionais [12]. Sob a perspectiva da legislação, a ilegalidade da caça de animais silvestres é amplamente reconhecida no Brasil (Art. 29 da Lei Federal 9605/98 - Lei de Crimes Ambientais), mas existem exceções nos seguintes casos: 1) em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; 2) para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; 3) por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente. Na área pesquisada, embora essas razões estimulem a caça, elas se sobrepõem a outras motivações, como por exemplo, o caráter esportivo dessa atividade, que é revestido de forte valor cultural. Não há dialogo entre os caçadores e órgãos ambientais, de forma que as atividades cinegéticas acontecem de forma clandestina ou semiclandestina, uma vez que os praticantes são conscientes de que a caça representa uma atividade ilegal no contexto local. Esse panorama demonstra claramente a necessidade de implementação e aprimoramento de políticas públicas direcionadas ao manejo da fauna silvestre, buscando um modelo de gerenciamento ambiental e conservação das espécies animais embasados numa realidade social. Ignorar a importância da dimensão humana na conservação animal pode resultar em efeitos negativos para planos de manejo.
A inclusão das espécies cinegéticas registradas em listas de ameaça em âmbito nacional e internacional nos coloca diante do desafio de buscar formas de exploração que minimizem o impacto sobre as espécies cinegéticas e, para isso, torna-se necessário compreender o contexto multidimensional que envolve as práticas cinegéticas. A caça no semiárido brasileiro continua tendo uma forte relevância do ponto de vista cultural e socioeconômico, de forma que a mitigação de suas implicações ecológicas deve ser planejada levando em consideração os diferentes aspectos associados a essas atividades. Nossos resultados sugerem a necessidade urgente da adoção de políticas públicas voltadas para o manejo da fauna silvestres na região. Uma redução da pressão de caça parece representar o ideal de conservação e estratégia de manejo da fauna [110], embora essa redução não seja viável em muitas áreas por uma série de razões [12]. À luz da realidade local, medidas destinadas a minimizar os impactos sobre as populações animais são fundamentais e devem incluir: a) desenvolvimento de programas educacionais de manejo da vida selvagem, com fortes componentes de legislação ambiental e sua aplicação correta, e b) criação de canais de comunicação entre instituições acadêmicas e governamentais com populações humanas envolvidas na caça [111]. Além disso, medidas externas que limitem o comportamento das populações locais devem ser consideradas, tais como controlar o comércio ilegal de animais silvestres [12].
Convém salientar, no entanto, que muitos fatores afetam populações animais no bioma caatinga, sendo a utilização destes animais pelas populações locais, apenas um dos fatores. De acordo com Leal et al. [17], a atividade humana não-sustentável como agricultura de corte e queima, a contínua remoção da vegetação para a criação de bovinos e caprinos têm causado o empobrecimento ambiental em larga escala. Como tal, a caça de animais selvagens deve ser considerada junto a outras pressões antrópicas [12, 111, 112]. No âmbito do semiárido, a elaboração de planos de manejo e conservação devem considerar o contexto social e cultural das pessoas envolvidas nessas atividades, sendo implementadas em consonância com populações como usuárias dos recursos.
Referências
Appendices
Apêndice 1.
Espécies vertebrados cinegéticos utilizadas no semiárido do Estado da Paraíba, com suas formas de uso e interação com a população local. Legenda: LC- Least concern, VU- Vulnerable (Categorias da IUCN), NL – Não Listado na IUCN, VUB- Vulnerável pela lista vermelha de espécies ameaçadas do Brasil